António Arnaut e João Semedo em Entrevista

Jornal i de 02  de Janeiro de 2018, entrevista a António Arnaut e a João Semedo à jornalista Marta F. Reis. Fotografias de Diana Tinoco/Jornal i

Nesta entrevista, por ocasião da publicação do livro de ambos “Salvar o SNS” Arnaut e Semedo declaram que este seu projecto é um primeiro passo para trazer à discussão uma nova Lei de Bases da Saúde e explicam as suas preocupações relativas ao SNS. O subfinanciamento, as carreiras, a actuação do (então) ministro Adalberto Campos Fernandes, as PPP, a motivação dos profissionais e a saúde – negócio versus direito – são temas abordados. Uma entrevista muito bem conseguida e polvilhada com o sentido de humor característico de ambos.  Aconselho vivamente a sua leitura na íntegra

Excertos:

(…) António Arnaut e João Semedo, dois rostos da defesa do Serviço Nacional de Saúde, deram o pontapé de saída com um livro onde apresentam uma proposta concreta: não há lugar para as PPP, há uma aposta nas carreiras dos profissionais de saúde e na prevenção e eliminam-se as taxas moderadoras” (nos cuidados primários e urgências) (…)

(…) A.A. – Quando aceitei ser Ministro dos Assuntos Sociais do segundo governo de Mário Soares, pus como condição inscrever no programa do governo a criação do Serviço Nacional de Saúde. Ninguém pôs nenhuma objecção, nem mesmo o CDS que estava no governo connosco. Todos pensavam que essa promessa não era para ser cumprida ou porque o ministro não seria capaz de o fazer ou porque colocariam tantos entraves que o ministro teria de desistir. O ministro era eu (risos). (…) O governo caiu mas entretanto o ministro fez o despacho de 29 de Julho de 1978 que era uma antecipação do SNS, abrindo os serviços de saúde, os serviços médico-sociais a todos os cidadãos de forma gratuita e universal. Depois, quando já era deputado, pegou num projecto que já tinha sido aprovado em conselho de ministros e levou-o para a Assembleia da República como projecto de lei do Partido Socialista e aí seguiu os trâmites legais e foi aprovado como Lei da República. (…)

A.A. – Quando aceitei ser Ministro dos Assuntos Sociais do segundo governo de Mário Soares, pus como condição inscrever no programa do governo a criação do Serviço Nacional de Saúde. Ninguém pôs nenhuma objecção, nem mesmo o CDS que estava no governo connosco.

(…) J.S. – cometeram-se muitos erros: travou-se o financiamento e o investimento quando eles ainda eram necessários para completar a rede de serviços ou renová-la, puseram-se de lado as carreiras e os concursos ao mesmo tempo  que se cortaram os laços contratuais facilitando e promovendo o descontentamento entre os profissionais e sua fuga para os hospitais privados, esqueceu-se a prevenção e só se pensou nos cuidados curativos, não se introduziram as mudanças necessárias no modelo de cuidados em função da evolução da sociedade, da população e do padrão da doença, permitiu-se uma intensa substituição da prestação pública pela prestação privada, esvaziando o SNS de importantes competências e capacidades. (…)

(…) A.A.: A maior parte dos políticos não são utentes do SNS e não estão sensíveis a estes problemas. Eu reclamo em relação a todos mas principalmente do Partido Socialista, que tem o dever ético e o imperativo moral de defender o SNS e esta proposta que apresentávamos é o contributo para uma nova lei que salve o SNS. Este livro é apenas um episódio de uma luta antiga. Além do subfinanciamento crónico e por vezes intencional para degradar o SNS, há uma destruição de carreiras que também leva a que o SNS esteja periclitante e a precisa de ser salvo, se não restará dele apenas uma saudade. Restará dele apenas um serviço caritativo.

J.S.: Julgo que nunca ninguém imaginou ser possível ter um SNS desta qualidade e dimensão sem dispor de um financiamento à altura, proveniente dos impostos pagos pelos portugueses. O SNS tem custos elevados mas que são pagos por todos, não são oferecidos nem caem do céu aos trambolhões. É uma escolha dos portugueses. Mas também ninguém imaginou que parte significativa desse financiamento fosse desviado para pagar a privados e não para reforçar os recursos financeiros colocados à disposição do SNS. Por exemplo, as PPP são inutilmente caras e muito caras porque o Estado podia prestar os mesmos serviços sem ter de pagar aos privados a margem de lucro de que eles beneficiam nesses contratos. O SNS não é caro, o que fica caro são as decisões erradas, só para favorecer interesses particulares, dentro e fora do SNS. (…)

(…) A.A. – A expansão do sector privado  que se verifica – já fazem 30% das cirurgias e 30% das consultas – surge à custa da degradação do SNS. Faço questão de dizer que não sou contra o sector privado, mas tem de ser complementar ou suplementar do SNS. (…)

(…) J.S. – Ninguém espera que um estudo pago por uma PPP diga que ela não é uma boa solução ou que fica mais cara para o Estado… É a mesma coisa que perguntar ao dono do restaurante se o peixe é fresco. Não faz sentido o SNS ter de garantir e pagar o lucro aos privados que gerem os hospitais em regime de PPP… (…)

J.S. – Ninguém espera que um estudo pago por uma PPP diga que ela não é uma boa solução ou que fica mais cara para o Estado… É a mesma coisa que perguntar ao dono do restaurante se o peixe é fresco.

(as PPP) … são um corpo estranho no SNS porque introduzem valores e critérios de gestão – a necessidade de alcançar bons lucros – que são alheios ao interesse público. O interesse do SNS não é ter lucro, é ter respostas de qualidade. A gestão do SNS tem por meta os resultados clínicos, a gestão privada tem por meta os resultados financeiros, o que gera contradições.O SNS passou a ser uma manta de retalhos.

J.S. – A gestão do SNS tem por meta os resultados clínicos, a gestão privada tem por meta os resultados financeiros, o que gera contradições

(…) A.A. –  (…) O SNS foi contestado pela direita, o CDS e o PSD votaram contra a lei fundadora, mas depois compreenderam que foi uma grande reforma e que tem sido um fator de coesão social muito importante. Hoje os partidos à direita afirmam-se defensores do SNS (…) Vou fazer 82 anos. (o SNS) É a grande causa da minha vida, como já lhe disse até pelas minhas origens na aldeia. Eu conhecia aquela realidade, as pessoas só eram tratadas sem pagar quando levavam um atestado de indigentes, era humilhante. Se tivessem uma casinha já não tinham direito a nada. Tinham de vender as cabras. Desde a minha juventude lutei pelos grandes valores da dignidade humana e quando por acaso fui para ministro dos Assuntos Sociais, assumi este compromisso. Foi um compromisso de honra que levei até ao fim perante muitas dificuldades e incompreensões, incluindo no meu próprio partido, a começar pelo ministro das Finanças Vítor Constâncio, que estava mais preocupado com os números do que com a dignidade dos portugueses. Eu sou mesmo socialista mas isto não tem nada a ver com ideologia, é uma questão ética. A reforma do SNS pode ter uma componente ideológica, mas é sobretudo uma exigência ética da civilização. Não é justo que as pessoas sofram e morram por falta de assistência médica por não terem dinheiro. Por isso pagamos os nossos impostos. Este livro é por isso um episódio de uma luta antiga. E enquanto eu tiver um bocadinho de força e vitalidade, continuarei a lutar. Quando o SNS faz as pessoas esperar meses por uma consulta, por um exame ou cirurgia às vezes urgente, deixou de ser um Serviço Nacional de Saúde.

A.A. – A reforma do SNS pode ter uma componente ideológica, mas é sobretudo uma exigência ética da civilização. Não é justo que as pessoas sofram e morram por falta de assistência médica por não terem dinheiro. Por isso pagamos os nossos impostos.