Nos 35 anos do Serviço Nacional de Saúde

A intervenção de Arnaut insere-se nas comemorações dos 35 anos do SNS, no âmbito de uma iniciativa que decorreu no Auditório da Universidade Nova, em Lisboa, a 15 de Setembro de 2014 e é dirigida ao público, em geral, e, em especial, ao então Ministro da Saúde (Paulo Macedo).

Excertos:

(…) … sinto ser minha obrigação cívica alertar o Sr. Ministro para as carências evitáveis, a desmotivação de muitos profissionais, a falta de recursos e para uma certa debilitação do SNS, em contraste com a expansão e fortalecimento do sector mercantil, com a agravante de que, cerca de metade das suas receitas, provêm do Estado.

É preciso reintegrar as carreiras profissionais na função pública, pelo menos para quem aceitar a dedicação exclusiva. É preciso libertar a saúde da suserania dos grupos financeiros, especialmente das multinacionais farmacêuticas. Os custos astronómicos do medicamento para tratar a Hepatite C, geradores de um lucro obsceno de 8.000%, impõem, caso não seja possível negociar um preço justo, a expropriação da patente, nos termos da lei e da moral. (…)

(…) É certo que vivemos tempos difíceis, tanto em Portugal como na União Europeia, com a meticulosa e programada destruição do Estado Social. Porém, Senhor Ministro e meus Senhores, o problema do SNS nunca foi a sua sustentabilidade financeira mas a sua sustentabilidade política. Somos dos países ocidentais que menos gasta, em despesa pública, per capita. A dotação orçamental ficou-se à volta dos 5% do PIB. (…)

(…) O verdadeiro problema, Senhor Ministro, é de natureza política ou ideológica, e entronca na questão de saber qual o tipo de sociedade em que queremos viver. Naquela em que o mercado comanda a vida e as pessoas são deixadas à sua sorte, ou naquela outra em que a solidariedade ilumina o caminho e as pessoas são cidadãos iguais em dignidade e direitos? (…)

(…) Conheço as dificuldades gerais e conjunturais. Já passei por elas, talvez de maior monta, em 1978, quando foi elaborado o Projecto do SNS pela equipa do Ministério dos Assuntos Sociais, e em 1979, quando como deputado, apresentei na Assembleia da República o referido Projecto, que deu origem à Lei 56/69, publicada faz hoje 35 anos.

A situação era inteiramente desfavorável a uma iniciativa desta envergadura. Portugal estava à beira da bancarrota e o FMI assustava os medrosos do costume. Os grupos de pressão, a direita dos interesses, a direita parlamentar e o então bastonário da Ordem dos Médicos, conjugaram-se para me atacar pessoal e politicamente. Fui acusado de estar a soldo de Moscovo e de querer estatizar a saúde, quando o que nós pretendíamos, por um elementar sentido de justiça, era dar algum conforto ao sacrificado povo português e fazer com que o acesso a cuidados de saúde fosse um direito de todos e não um privilégio de quem os podia pagar.

Foi nesse espírito humanista, em cumprimento do imperativo ético-constitucional, e por coerência com os meus valores de sempre, que iniciámos a caminhada, no II Governo de Mário Soares, com o apoio das forças progressistas. Tive ainda a sorte de contar com um grupo de técnicos altamente qualificados, que partilhou do meu entusiasmo e, no prazo de um mês, elaborou o Projecto da Lei de Bases do SNS. É um dever de gratidão lembrar, mais uma vez, o Secretário de Estado da Saúde,Mário Mendes, e, por todos os membros do Grupo de Trabalho, o Professor de Saúde Pública, António Gonçalves Ferreira.

Tive sorte, Senhor Ministro, e por isso chegámos aqui. Mas V. Exª tem ainda mais sorte, porque de há anos a esta parte, e graças aos excelentes resultados alcançados, todas as forças políticas e sociais apoiam o SNS. Um recente inquérito de opinião considerou-o a reforma mais querida dos portugueses. A Ordem dos Médicos é hoje um baluarte da sua defesa, por convicção e dever deontológico. (…)

(…) É preciso recuperar a esperança. É nas noites mais escuras que as estrelas brilham mais. Que o SNS brilhe cada vez com maior fulgor na constelação dos direitos sociais, tão arduamente conquistados. (…)

 

(in “A mesma causa, Conferências e Outras afluências, págs.  39-45)