Homenagem e gratidão a Mário Mendes

“Mário Mendes não foi apenas um bom amigo e camarada, mas um companheiro dedicado na luta pela criação do Serviço Nacional de Saúde. É esta faceta da sua vida cívica que desejo recordar em sua homenagem.

(transcrição integral do texto publicado no livro “O Étimo Perdido”)

Poderia dizer que tudo aconteceu por acaso, se o acaso não fosse, muitas vezes, o produto do sonho e da vontade. Em Janeiro de 1978, após a queda do I Governo Constitucional, Mário Soares convidou-me para Ministro da Justiça do II Governo e eu comecei a elaborar o Programa do Ministério. Como advogado conhecia razoavelmente o sector e, por isso, sempre me incomodou a situação dos réus criminais que se apresentavam a julgamento completamente desamparados por não terem dinheiro para constituir advogado. O tribunal nomeava-lhes um “defensor oficioso”, que podia não ser jurista e que, por via de regra, se limitava a pedir a “costumada justiça”. Para tentar pôr cobro a este arremedo de “assistência judiciária” herdado do Estado Novo, verdadeiramente humilhante para o “assistido” e indigno do Estado Social traçado na Constituição, tive a ideia de criar o “Instituto do Defensor Público”, que poderia vir a tornar-se num Serviço Nacional de Justiça. O Estado democrático não devia ter apenas o direito de acusar os suspeitos da prática de crime, exercendo a acção penal através do Ministério Público, mas também o dever de garantir a defesa dos cidadãos carenciados, fazendo assim valer o princípio da igualdade, indispensável à boa administração da justiça.

Estava a trabalhar neste projecto quando Mário Soares me chama a S. Bento e me pede, por razões que não vêm ao caso, para aceitar a pasta dos Assuntos Sociais, que compreendia a Saúde e a Segurança Social.

Tentei recusar a troca de ministérios com vários argumentos, de que destaco o mais poderoso: nada sabia do sector e apenas conhecia os velhos Hospitais da Universidade de Coimbra. Porém, Mário Soares conseguiu convencer-me, realçando a minha sensibilidade para as questões sociais e terminando com este argumento irrespondível: arranjas um bom Secretário de Estado para a Saúde e tens o problema resolvido.

Aceitei o pesado encargo com uma condição: inscrever no Programa do Governo a criação do Serviço Nacional de Saúde. Se na Justiça as desigualdades entre cidadãos eram grandes, no acesso a cuidados de saúde eram maiores e mais graves, porque as pessoas sem recursos económicos estavam, praticamente, excluídas dum direito que a Constituição da República considerava fundamental. A igualdade de direitos é a primeira condição da dignidade humana e, portanto, da liberdade, valores que, conjuntamente com a solidariedade, caraterizam o socialismo ético.

Saí de S. Bento com a consciência de que os acasos da política me davam a possibilidade de concretizar um sonho antigo, e com a preocupação de que tinha de gizar o programa do Ministério em curto prazo, pois já estava marcada a posse do Governo. Foi nestas circunstâncias de grande tensão e responsabilidade que, seguindo o conselho do Primeiro-Ministro, me ocorreu imediatamente o nome de Mário Mendes. Professor e médico prestigiado, amigo de confiança, era a pessoa indicada para companheiro do dificultoso empreendimento que me propunha iniciar. Mas havia uma dúvida que me atormentava: se ele não aceitasse, por causa dos seus compromissos académicos e profissionais, como poderia eu desempenhar-me na tarefa que acabava de assumir? Telefonei então a Miguel Torga, nosso amigo comum, pedindo-lhe que o “preparasse”. No dia seguinte encontrámo-nos e o Doutor Mário Mendes logo se dispôs, com verdadeiro espírito de missão, a interromper a sua carreira para encetarmos a jornada que, após vários incidentes de percurso, incluindo a queda do Governo, levaria  à aprovação da Lei 56/79, de 15 de Setembro, que criou o Serviço Nacional de Saúde.

Neste breve depoimento em sua homenagem devo, sobretudo, realçar a fidelidade ao compromisso assumido, o esforço incessante e devotado na gestão da Secretaria de Estado e o seu valioso contributo técnico para a elaboração do ante-projecto do SNS. Foi graças a ele e aos demais membros do Grupo de Trabalho, que superiormente orientou, que foi possível elaborar, em pouco mais de um mês, o respectivo articulado.

Após a queda do governo, Mário Mendes regressou à sua cátedra e ao seu consultório. Eu retomei o lugar de deputado e foi nessa qualidade que apresentei na Assembleia da República o mesmo projecto que haveria de culminar na aprovação da referida lei, que honra o espírito de Abril e que, apesar de algumas insuficiências tanto tem contribuído para a qualidade de vida do nosso povo, para a coesão e justiça social.

Mário Mendes continuou a meu lado, com o seu apoio e o seu conselho. Foi um grande defensor do SNS. Aliás, o seu empenhamento pela reforma da Saúde vem muito detrás, pois em 1961 integrou o “Movimento das Carreiras Médicas”, que havia de colher os primeiros frutos dez anos depois, com a Reforma de Gonçalves Ferreira, também membro do “Grupo de Trabalho” e inspirador de muitas normas ainda em vigor.

Resta-me lembrar que se deve a Mário Mendes o despacho que, com o meu acordo, desencadeou a construção dos actuais Hospitais da Universidade, cujo processo estava encalhado nas habituais teias burocráticas do Ministério.

Amigo, companheiro e camarada, profissional distinto, cidadão exemplar, militante do SNS, aqui fica, em palavras simples, a minha Homenagem e Gratidão.”

 

(na foto António Arnaut está com os dois Secretários de Estado do seu Ministério – Victor Vasques à esquerda e Mário Mendes à direita. O Ministério dos Assuntos Sociais tinha sob sua responsabilidade a Segurança Social e a Saúde)