A parábola de uma vida

(Jornal de Letras de 23 de Julho a 5 de Agosto de 2014)

Neste texto Arnaut percorre a sua vida como homem, maçon, advogado, político e escritor. Partilha as suas memórias desde a juventude até à actualidade. Destaca os momentos altos e os baixos da sua vida. Atravessa o difícil processo da criação do SNS, as pressões que sofreu e o desencanto com uma nova forma de fazer política que o levaram, como “homem de convicções e de palavra”, a abandonar aquele mundo onde já não se revia. Contudo, o abandono da política activa, não o fez desistir de lutar por uma sociedade mais justa e mais fraterna, e o novo combate prosseguiu com as intervenções cívicas e com a escrita, como forma de exercício de uma cidadania activa e atenta. Assim prosseguiu a sua luta em defesa do SNS e dos valores ético-humanistas que sempre o inspiraram.

 

(…)  Lembrei-me do Torga, porque quando, em 1983, deixei a política ativa por ter sentido, dolorosamente, que o contorcionismo ideológico e a flexibilidade de caráter eram a cartilha dominante, ele pediu-me que escrevesse as Memórias das minhas atribulações, para proveito e exemplo dos mais jovens. Recusei, argumentando não me parecer ético revelar publicamente intrigas e malfeitorias, até porque alguns episódios estavam ainda em ferida acesa. (…)

(…) Ora aqueles meus companheiros e mestres, aos quais devo acrescentar Paulo Quintela, Orlando de Carvalho, Joaquim Namorado e, sobretudo, Miguel Torga, com o qual comecei a conviver assíduamente, ensinaram-me o culto da Pátria e o respeito pelo Povo, duas faces inseparáveis da mesma realidade moral, esculpindo na minha consciência o perfil ético da política, à maneira de Antero, como a mais nobre actividade do Homem, por ter como único objectivo o bem-comum. (…)

(…) Como deputado constituinte e da Assembleia da República e, sobretudo como Ministro dos Assuntos Sociais (1978), nunca tergiversei nem cedi às conveniências e às pressões. A criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), iniciada por despacho de 20 de Julho de 1978 e concretizada pela Lei 56/79 de 15 de Setembro, foi a coerência assumida até ao limite do possível. Ainda hoje me doem as cicatrizes desse combate, sucessivamente abertas pelos golpes que têm desferido a essa grande reforma de Abril. E assim, molestado no corpo e na alma (…) senti que não tinha lugar no rotativismo instalado que nos trouxe a este tempo pantanoso onde impera o compadrio e a corrupção, e a esperança paga imposto.

Homem de convicções e de palavra, educado no respeito pelos grandes valores éticos que têm o esquadro e o compasso como símbolo da retidão, da probidade e do livre pensamento criador, não podia continuar na política quando ela se tornou para muitos, apesar da seriedade de outros, um carreirismo guiado por interesses ilegítimos e conivências obscuras, sem cuidar do povo oprimido e sofredor. Mas não desisti da luta (…)

 

“Como deputado constituinte e da Assembleia da República e, sobretudo como Ministro dos Assuntos Sociais (1978), nunca tergiversei nem cedi às conveniências e às pressões (…) Ainda hoje me doem as cicatrizes desse combate, sucessivamente abertas pelos golpes que têm desferido a essa grande reforma de Abril. ”

 

(…) Não escrevi as minhas Memórias, como queria Torga, mas segui o seu conselho de contar, sob a forma de ficção, a minha experiência político-partidária. Assim nasceu o romance histórico Rio de Sombras (2007) que abarca o período de 1968/88.(…)

(…) É nos meus livros que me assumo e resumo. Por isso, quem me quiser conhecer melhor terá de me ler. Tudo o que escrevo é verdade, mas tenho pago o preço dessa autenticidade. (…)

(…) Aqui fica, pois, escrito com a tinta exata da sinceridade, um esboço autobiográfico, ou melhor, a parábola da minha vida: uma caminhada em linha reta, com alguns acidentes de percurso, que nunca perdeu o rumo dos grandes valores ético-humanistas, e que pôde alcançar alguns cumes de onde se avista o céu mais azul. (…)